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Quase nove anos depois da tragédia, caso da boate Kiss começa a ser julgado

Começa nesta quarta‑feira (1º), no Foro Central I de Porto Alegre, o julgamento de quatro réus denunciados pelo MP‑RS (Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul) à Justiça no caso do incêndio da boate Kiss, ocorrido em janeiro de 2013 em Santa Maria (RS).

A tragédia deixou 242 mortos e 636 feridos e resultou em um processo de quase 20 mil páginas. Todos os acusados respondem por homicídio simples, com dolo eventual (quando o sujeito sabe que pode causar a morte e assume esse risco, indiferente ao que possa vir a ocorrer), e tentativa de homicídio.

Estima‑se que será o mais longo julgamento da história do Estado e um dos mais extensos ocorridos até hoje no Brasil, se estendendo por 15 dias. Para termos de comparação, o caso Bernardo levou cinco dias. Os de Suzane von Richtofen e dos Nardoni, seis dias cada.

Após quase nove anos da tragédia e do indiciamento de 28 pessoas ao longo da investigação, o Tribunal do Júri vai decidir agora o destino de dois sócios da casa noturna, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann; do músico Marcelo de Jesus dos Santos e do produtor cultural Luciano Bonilha Leão, ambos integrantes da banda Gurizada Fandangueira.

O grupo se apresentava na festa Agromerados, organizada por formandos de vários cursos da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), quando um de seus integrantes disparou um artefato pirotécnico, atingindo parte do teto da boate Kiss, que pegou fogo.

Marco jurídico histórico

Independentemente da decisão dos sete jurados que serão sorteados nesta quarta‑feira (1º), às 9h, e da sentença que deverá ser proferida pelo juiz‑presidente Orlando Faccini Neto, titular do 2º Juizado da 1ª Vara do Júri da Comarca de Porto Alegre, o processo já entrou para a história jurídica do país.

“O caso tem impactos relevantes na Justiça brasileira e deverá servir de exemplo mundo afora”, acredita Fabiano Clementel, advogado criminalista e professor de Processo Penal na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Ele se refere ao fato da criação de precedente no país, pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), que firma jurisprudência para que casos similares ao da boate Kiss sejam levados a júri popular, enquadrados como homicídio com dolo eventual.

Isso porque a tipificação do crime foi alvo de embates entre o MP‑RS e a defesa dos réus, houve idas e vindas em instâncias inferiores, tendo o caso chegado ao STJ, em Brasília.

Na denúncia, o Ministério Público havia incluído duas qualificadoras do crime (motivo torpe e meio cruel por emprego de fogo), que alterariam as penas mínima e máxima em caso de condenação. Porém, o ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do caso na corte superior, retirou‑as e converteu a denúncia de homicídio qualificado para homicídio simples, com dolo eventual.

Para se ter uma ideia do impacto da decisão do STJ, no caso de condenação por homicídio culposo (quando não há intenção), as penas ficam entre um e três anos. No homicídio simples, com dolo eventual — caso da denúncia contra os réus da boate Kiss ­—, entre seis e 20 anos. No homicídio qualificado, 12 a 30 anos.

“Embora os acusados possam ter admitido o risco de causar a morte das vítimas, não há provas suficientes nos autos de que tenham admitido a possibilidade de asfixiar as pessoas para causar-lhes excessivo sofrimento”, escreveu Schietti Cruz em seu voto.

Sustentação da defesa

Os advogados de defesa afirmam e vão sustentar em plenário que seus clientes não agiram com intenção, que o incêndio foi um acidente e que os próprios réus poderiam ter sido vítimas fatais.

Representantes dos réus apostam na absolvição dos clientes e tentam descolar deles quaisquer responsabilidades pelo incêndio. “Todos nós somos vítimas da Kiss”, diz a advogada Tatiana Vizzotto Borsa, defensora do vocalista Marcelo de Jesus dos Santos. “Queremos que seja feita justiça e não vingança.”

Tese de acusação

O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, responsável pela acusação dos réus, será representado pelos promotores Lúcia Helena de Lima Callegari e David Medina da Silva.

Eles terão como assistente o advogado da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Pedro Barcellos Júnior.

Para provar aos jurados a prática do crime de homicídio com dolo eventual, os promotores se baseiam em laudos da perícia que apontam uma série de fatores que podem ter resultado na tragédia e cujos riscos teriam sido assumidos pelos réus.

Entre outras coisas que concorreram para a catástrofe, a acusação indica a inexistência de saídas alternativas no local do incêndio, a sinalização de emergência inadequada, o uso inapropriado de material inflamável, a falta de treinamento de funcionários para casos excepcionais e o bloqueio de rotas de evacuação.

Para mostrar aos jurados a dinâmica dos fatos ocorridos naquela noite de janeiro de 2013 — que o acesso a equipamentos e exaustores estavam obstruídos, impedindo a dispersão da fumaça tóxica, por exemplo —, o Ministério Público se valerá de uma maquete em 3D.

O desenvolvimento digital da casa noturna foi feito pela antropóloga argentina Virginia Vecchioli, professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com a ajuda de bolsistas ligados ao Observatório de Direitos Humanos da universidade.

Demora no julgamento

Assim que o juiz Orlando Faccini Neto der início à inquirição de testemunhas, às 13h desta quarta‑feira, terão se passado 3.230 dias desde o incêndio na boate Kiss.

“A demora pode ser explicada por alguns aspectos importantes, como a complexidade da investigação, o tamanho da tragédia que envolveu quase mil vítimas diretas, além do fator absolutamente natural para quem vivencia isso no direito que é o sistema recursal”, esclarece o criminalista Fabiano Clementel.

Ao longo do processo, no entanto, houve pelo menos uma medida que, se não atrapalhou o andamento, também não contribuiu. O advogado Felipe Moreira de Oliveira, professor de Processo Penal na Faculdade de Direito da PUCRS, cita o pedido de desaforamento feito pelos representantes dos réus.

Trata‑se da transferência do Tribunal do Júri de uma comarca para outra; no caso, de Santa Maria para Porto Alegre. “Para se ter um julgamento justo e imparcial, foi importante o desaforamento, embora tenha impactado diretamente na vida dos familiares e das vítimas, com a necessidade de deslocamento”, explica Oliveira.

Estudos indicados pela defesa mostram que muitas das pessoas que comporiam o júri em Santa Maria poderiam ter relação indireta com as pessoas vitimadas. “Sabe‑se que o impacto do incêndio extrapolou os limites municipais e regionais, mas o desaforamento é relevante, pois até mesmo fortalece a sentença.” O pedido de alteração de foro foi feito pela defesa de três dos quatro réus.

Fonte: Foto: Reprodução, Redação O Sul

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