“Dá uma disfarçada, sabe, finge que eu tô atendendo” e “Eu não vou à tarde para a clínica amiga, inventei para a [nome] que tenho reunião” são mensagens apresentadas no inquérito que mostram que a profissional não prestava os atendimentos corretamente.
O g1 também conversou com a ex-funcionária que registrou as imagens, áudio e vídeos das crianças durante o atendimento e os entregou à polícia. O celular dela foi apreendido pela delegacia.
Contratada como acompanhante terapêutica de um dos meninos atendidos, a mulher disse que a fonoaudióloga a instruía a forjar os atendimentos não realizados nas agendas das crianças. Além disso, mantinha os pacientes em cárcere, trancados em uma sala específica, chamada de “sala de luz”. Ela ainda afirmou que optou por formalizar a denúncia quando viu o menino receber um tapa.
No inquérito, ainda consta que, pelas mensagens fornecidas, é evidente que as crianças ficavam com a ex-funcionária que denunciou o caso sem receberem as sessões individualizadas e multidisciplinares prometidas pela clínica da fonoaudióloga.
“Nas conversas é possível ver ainda a preocupação da fonoaudióloga em mentir para os pais, visando esconder o que ocorria na clínica”, detalha o inquérito.
O inquérito ainda investiga a atuação da terapeuta ocupacional, que também teria ofendido as crianças e não prestava os atendimentos pagos pelas mães. As conversas são de 29 de março a 8 de abril (veja acima).
“Se referiam às crianças com bastante deboche, ironia, demonstrando desinteresse profissional, o que confirma os crimes de estelionato e tortura, com intenção de causar sofrimento nos meninos ao colocá-los na área de luz”, aponta o inquérito.
De acordo com o delegado Paulo Calil, as filmagens feitas com aparelho foram encaminhadas para perícia e serão avaliadas. O delegado responsável pelo caso também disse que apura o crime de tortura, que, se comprovado, é inafiançável.
Em nota, a defesa da fonoaudióloga informou que colabora com as investigações policiais. Além disso, afirmou que a família teve de sair da casa com medo de represálias.
“É necessário destacar que não houve ainda sequer a constituição formal de inquérito policial, de modo que todas as informações referentes às denúncias devem ser analisadas com cautela e prudência, tanto em respeito à pessoa das acusadas como às supostas vítimas. Todo o conteúdo até então reunido em investigação deverá ser confrontado com outros meios de prova, de modo que as informações existentes até então não indicam de forma cabal a ocorrência de qualquer ilícito. No momento oportuno, a verdade seja aclarada a todas as partes interessadas no feito, visto que os documentos juntados até o momento nos autos não são suficientes para embasar as alegações”, diz a nota.
A ex-funcionária contratada como acompanhante de um dos meninos contou ao g1 que, quando se deu conta do que estava vivenciando na clínica, ficou abalada psicologicamente.
“As crianças não estavam tendo atendimento. A fonoaudióloga falava com as mães, mas as crianças ficavam na sala comigo, e eu estou cursando a psicologia, ainda não tenho esse repertório de fazer o tratamento adequado”, garante.
“Quando presenciei a olho nu, eu falei para a minha chefe, a que havia me contratado como acompanhante, que não queria trabalhar mais lá. Ainda fiquei na clínica quase um mês para registrar esses momentos. O que eu presenciei nunca vou tirar da cabeça. Não tem sentimento pior. Fiz tudo pelas crianças”, finaliza.
Mães denunciam agressões e tortura contra crianças autistas em clínica particular em Duartina — Foto: Arquivo pessoal
As mães que denunciaram à polícia as supostas agressões e torturas contra as crianças revelaram como suspeitaram das situações.
Uma delas ouvidas pelo g1 afirma que suspeitou do comportamento alterado do filho, de dois anos, após as consultas com a fonoaudióloga da clínica, que começaram no dia 8 de junho de 2021.
Na época, ela procurou atendimento quando percebeu que o menino não desenvolveu a fala, além de se alimentar apenas com comidas específicas. Depois de levar o filho à consulta, foi recomendado pela fonoaudióloga, segundo a mãe, que levasse o menino a um neurologista pediátrico.
Assim foi feito em 15 de junho de 2021, e o menino foi diagnosticado com TEA em grau leve para moderado pelo neurologista, também particular. A partir daí, a mulher começou a levar o filho a consultas regulares com a fonoaudióloga para que o acompanhamento fosse iniciado.
“Toda sexta-feira, meu filho ia à terapia com a fonoaudióloga e com a terapeuta ocupacional. Nós não tínhamos acesso às terapias, eram reservadas. Nesse tempo, não observamos nada de anormal”, conta.
Em paralelo a isso, a mulher explicou que foi orientada a levar o filho à Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Garça (SP), em julho de 2021. No local, ele também começou a ser acompanhado por fonoaudiólogas, psicólogas e terapeutas ocupacionais.
Pela Apae trabalhar com outro método de acompanhamento que não o ABA (Análise de Comportamento Aplicada – em português), como utilizado previamente pela fonoaudióloga da clínica particular, os profissionais recomendaram que a mãe escolhesse um dos locais para tratamento do filho, a fim de não confundi-lo.
“Quando ele entrou na Apae, eu percebi um avanço muito grande. Antes, ele não conseguia lidar com nada, mas melhorou o lado sensorial. Ele ainda não é 100% verbal, não entendemos muita coisa, mas tem melhorado muito. Ele já fala ‘mamãe’ e ‘papai’, por exemplo”, recorda.
As profissionais da Apae emitiram um relatório, encaminhado ao g1 pela mãe, com apontamentos de melhora no tato, no sensorial e, principalmente, na fala.
Inclusive, a mãe conta que eles chegaram a cogitar uma nova consulta com outro neurologista para comprovar o diagnostico de TEA, já que poderiam ter diagnosticado o estereotipismo de autista de forma precipitada.
Dessa vez, em consulta com uma neurologista pediátrica da Universidade Estadual Paulista (Unesp), foi levantada a hipótese de ser apenas um atraso de fala, com recomendação de que o paciente continuasse o atendimento periódico, além do acompanhamento com a Apae.
“Na primeira consulta, a médica falou que não fecha o diagnóstico para autismo antes dos três anos. Meu filho tinha dois anos e oito meses, mas, na observação, ela falou que ele não possui características para o autismo”, comenta.
Assim que o filho completou três anos, a mulher afirmou que o encaminhou a uma pediatra na Unidade Básica de Saúde (UBS) para consulta de rotina. Na ocasião, o menino se incomodou quando a médica examinou seus órgãos genitais.
Segundo a mãe, o menino começou a recusar o toque nos órgão em específico depois que começou a frequentar a fonoaudióloga da clínica particular de Duartina, sem razão aparente até então.
Assim que percebeu essa alteração de comportamento, outras mães também entraram em contato com ela com relatos parecidos (veja abaixo outros relatos).
A mãe contou também que o delegado responsável pelas investigações do caso a orientou a encaminhar o menino para psicóloga.
Essa, por sua vez, recomendou que a mãe gravasse um vídeo em que pergunta ao menino a respeito do órgão genital, relacionando ao período que foi atendido pela fonoaudióloga, na tentativa de descobrir o que motivou a recusa.
No vídeo enviado ao g1, a mãe pergunta: “onde a tia pegava e colocava a mãozinha?”. Logo o menino responde e aponta com o dedo sob a fralda: “aqui”. Para todas as vezes que a mãe questiona, a criança confirma que a profissional tocava no órgão, apesar de afirmar não sentir dor (assista abaixo).
Mães denunciam agressões e tortura contra crianças autistas em clínica de Duartina
Após quatro consultas com a psicóloga, será enviado um relatório ao delegado a fim de entender os motivos desta recusa e se estão relacionados à conduta da fonoaudióloga.
Segundo a denúncia de uma mãe, criança era trancada em salas no consultório da fonoaudióloga — Foto: Arquivo pessoal
Outra mãe ouvida pela reportagem contou que o filho, de nove anos, era trancado em salas no consultório da fonoaudióloga. Ela descobriu o ocorrido quando foi chamada à delegacia e viu a foto que mostra as mãos do menino no vidro (veja acima).
Segundo esta mãe, o menino foi diagnosticado com autismo em grau severo aos dois anos e meio. Desde então, o filho é acompanhado por essa fonoaudióloga.
Contudo, a mãe lembra que começou a perceber que o filho não estava evoluindo no tratamento desde o final de 2020. Por isso, quando foi chamada à delegacia, acreditava que se tratava da denúncia de falta de atendimento, já que um boletim de ocorrência desse teor já havia sido registrado.
“No dia 9 de junho deste ano, fui chamada à delegacia. Eu achava que eles iam me perguntar dessa falta de atendimento, que eu também vinha percebendo, mas não. Eu descobri que meu filho era trancado em salas do consultório. Não estava esperando. Eu confiava nela”, lembra.
Segundo denuncia da mãe, o filho voltava para a casa com as roupas urinadas e, algumas vezes, sem camiseta — Foto: Arquivo pessoal
Ainda segundo esta mãe, o filho voltava para a casa com as roupas urinadas e, algumas vezes, sem camiseta. No mesmo dia em que foi à delegacia, a mãe recorda que parou de levar o menino às consultas.
Uma terceira mãe entrou em contato com o g1 e explicou, bastante emocionada, que o filho, de seis anos, teria sido agredido na boca pela fonoaudióloga. Segundo ela conta, a criança levou um tapa por ter mordido a profissional.
O menino foi diagnosticado com autismo também em grau severo e, desde os dois anos, é levado para o acompanhamento multidisciplinar. Há dois anos, segundo a mulher, o filho também não demonstra evolução no tratamento.
“É muito difícil, eu sei de onde o meu filho veio, sei o que ele passou para chegar onde está. É uma criança que não sabe falar, que não sabe se expressar. Ele é extremamente vulnerável. O tapa doeu muito mais em mim. Desumano”, lamenta.
No fim de maio deste ano, a criança parou de fazer o acompanhamento nesta clínica particular com a justificativa do descaso no atendimento. Com orientação de outras profissionais, a mãe afirma que o pequeno já consegue, por exemplo, ficar sentado.